Como você sabe, dirás feito um cego tateando, e dizer assim, supondo um
conhecimento, faria quem sabe o coração do outro adoçar um pouco até
prosseguires, mas sem planejar, embora planejes há tanto tempo, farás
coisas como acender o abajur do canto depois apagar a luz mais forte,
criando um clima assim mais íntimo, mais acolhedor, que não haja tensão
alguma no ar, mesmo que previamente saibas do inevitável das palmas
molhadas de tuas mãos, do excesso de cigarros e qualquer coisa como um
leve tremor que, esperas, não transparecerá em tua voz. Mas dirás assim,
por exemplo, como você sabe, sim como você sabe, a gente, as pessoas,
infelizmente têm, temos, essa coisa, emoções, mas te deténs,
infelizmente? o outro talvez perguntaria por que infelizmente? então
dirás rápido, para não desviar-te demasiado do que estabeleceste,
qualquer coisa como seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que
nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente,
insistirás, infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções.
Meditarias: as pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que
sentem, e por trás do que sentem há o que são e nem sempre se mostra. Há
os níveis-não-formulados, camadas imperceptíveis, fantasias que nem
sempre controlamos, expectativas que quase nunca se cumprem, e sobretudo
emoções. Que nem se mostra. Por tudo isso, infelizmente, repetirás,
insistirás, completamente desesperado, e teu único apoio seria a mão
estendida que, passo a passo, raciocinas com penosa lucidez, através de
cada palavra estarás quem sabe afastando para sempre. Mas já não sou
capaz de me calar, talvez dirás então, descontrolado, e um pouco mais
dramático, porque meu silêncio já não é uma omissão, mas uma mentira. O
outro te olhará com seus olhos vazios, não entendendo que teu ritmo
acompanharia o desenrolar de uma paisagem interna, absolutamente
não-verbalizável, desenhada traço a traço em cada minuto dos vários dias
e tantas noites de todos aqueles meses anteriores, recuando até a data,
maldita ou bendita, ainda não ousaste definir, em que pela primeira vez
o círculo magnético da existência de um, por acaso banal ou pura magia,
interceptou o círculo do outro.
No silêncio que se faria, pensas,
precisarás fazer alguma coisa, como colocar um disco ou ensaiar um
gesto, mas talvez não faças nada, porque ele continuará te olhando com
seus olhos vazios, no fundo dos quais procuras, mergulhador submarino, o
indício mínimo de um tesouro escondido para que possas voltar à tona
com um sorriso nos lábios e as mãos repletas de pedras preciosas. Mas
nesse silêncio que certamente se fará, talvez acendas mais um cigarro, e
com a seca boca cerrada, sem nenhum sorriso, evitarias o mergulho para
não correres o risco de encontrar uma fera adormecida. Teu coração
baterá fortemente, sem que ninguém escute, e por um momento talvez
imaginas que poderias soltar os membros e simplesmente tocá-lo, como se
assim conseguisses produzir uma espécie qualquer de encantamento que de
repente iluminaria esta sala com aquela luz que tentas, em vão,
descobrir também nele, enquanto dentro de ti ela se faz quase tangível
de tão clara.
Nítida luz que ele não vê, esse outro sentado a teu
lado na sala levemente escurecida, onde os sons externos mal penetram,
como se estivessem os dois presos dentro de uma bolha de ar, de tempo,
de espaço, e novamente encherás o cálice com um pouco mais de vinho para
que o líquido descendo por tua garganta trêmula vá de encontro a essa
claridade que tentas, precário, transformar em palavras luminosas para
ofender a ele. Que nada, diz, e nada dirás, e sem saber por quê pensas
um extenso corredor escuro onde tateias, feito cego, as mãos estendidas
para o vazio, pressentindo o nada, que tu mesmo prepararias agora,
suicida meticuloso, através de silêncios mal tecidos e palavras inábeis,
pobre coisa sedenta, te feres, exigindo o poço alheio para matar tua
sede indivisível.
Anjos e demônios esvoaçariam coloridos pela sala,
mas o caçador de borboletas permanece parado, olhando para a frente, um
cigarro aceso na mão direita, um cálice cheio de vinho na mão esquerda. A
presença do outro latejaria a teu lado, quase sangrando, como se o
tivesses apunhalado com tua emoção não dita. Tuas mãos apoiadas em
bengalas mentirosas não conseguiriam desvencilhar o gesto para romper
essa espessa e invisível camada que te separa dele. Por um momento
desejarás então acender a luz, dar uma gargalhada ridícula, acabar de
vez com tudo isso, fácil fingir que tudo estaria bem, que nunca houve
emoções, que não desejas tocá-lo nem conhecê-lo, que o aceitas assim
latejando amigo velo remoto, completamente independente de tua vontade,
te todos esses teus informulados sentimentos. No momento seguinte, tão
imediato que nascerá, gêmeo tardio, quase ao mesmo tempo que o anterior,
desejerás depositar o cálice, apagar o cigarro e estender duas mãos
limpas em direção a esse rosto que sequer te olha, absorvido na
contemplação de sua própria paisagem interna.
Mas indiferente à
distância dele, quase violento, de repente queres violar com tua boca
ardida de álcool e fumo essa outra boca a teu lado. Desejarás desvendar
palmo a palmo esse corpo que tá tento tempo supões, até que as palma
famintas de tuas mãos tenham percorrido todos os caminhos, até que tua
língua tenha rompido todas as barreiras do medo e do nojo, tua boca
voraz tenha bebido todos os líquidos, tuas narinas sugado todos os
cheiros e, alquímico, os tenha transmutado num só, o teu e o dele,
juntos - luz apagada, peças brancas de roupa cintilando, jogadas ao
chão. Desejá-lo assim, a esse outro tão íntimo que às vezes julgas
desnecessário dizer alguma coisa, porque enganado supões que tu e ele,
vezenquando, sejam um só, te encherá o corpo de uma força nova, como se
uma poderosa energia brotasse de algum centro longínquo, há muito
adormecido, quem sabe dessa luz oculta, é então que sentes claramente
que ele não é tu e que tu não serás ele, essa coisa, o outro, que mágico
ou demoníaco, deliberado ou casual, te inflama assim, alucinando tua
alma. Queres pedir a ele que, simplesmente sendo, te mantenha nesse
atormentado estado brilhante para que possas iluminá-lo também com teu
toque, com tua língua terna, com a vara de condão de teu desejo. Mas ele
nada sabe, nem saberá se permaneceres assim, temeroso de que uma
palavra ou gesto desastrados seriam capazes de rasgar em pedaços essa
trama onde te enleias cada vez mais sem remédio, emaranhado em ti, em
tua viva emoção, emaranhado no desconhecido de dentro dele, o outro -
que no lado oposto do sofá cruza as mãos sobre os joelhos, quase
inocente, esperando atento, educado, que de alguma forma termines o que
começaste.
Muito mais que com amor ou qualquer outra forma tortuosa
de paixão, será surpreso que o olharás agora, porque ele nada sabe de tu
próprio poder sobre ti, e neste exato momento poderias escolher entre
torná-lo ciente de que dependes dele para que te ilumines ou escureças
assim, intensamente, ou quem sabe orgulhoso negar-lhe o conhecimento
desse estranho poder, para que não te estraçalhe impiedoso entre as
unhas agora calmamente postas em sossego, cruzadas nas pontas dos dedos
sobre os joelhos.
Ah: fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás
todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio
permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás
dias adentro, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão
nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás
em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás
desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás
sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito
alheio o jeito exato dele, em algum cheiro o cheiro preciso dele.
Que
não suspeitará de tua perdição, mergulhado como agora, a teu lado, na
contemplação dessa paisagem interna onde não sabes sequer que lugar
ocupas, e nem mesmo estás. Na frente do espelho, nessas manhãs
maldormidas, acompanharás com a ponta dos dedos o nascimento de novos
fios brancos nas tuas têmporas, o percurso áspero e cada vez mais fundo
dos negros vales lavrados sob teus olhos profundamente desencantados.
Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro. Sabes também que já não
poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas
palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para
determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo,
te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma
certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem
sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa.
Só não
saberás nunca que neste exato momento tens a beleza insuportável da
coisa inteiramente viva. Como um trapezista que só repara na ausência da
rede após o salto lançado, acendes o abajur do canto da sala depois de
apagar a luz mais forte. E começas a falar.
Caio Fernando Abreu: Natureza Viva, in Morangos Mofados
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