quinta-feira, 28 de junho de 2012

segunda-feira, 25 de junho de 2012

OS DRAGÕES NÃO CONHECEM O PARAÍSO

Para
Marion Frank,
lembrando os dragões de
Alex Flemming

“Por ver com muita clareza as causas e os efeitos,
ele completa, no tempo certo, as seis etapas
e sobe no momento adequado rumo aos céus, c
omo que conduzido por seis dragões.”
(Ch‘ien, O Criativo: I Ching, o Livro das Mutações)

TENHO um dragão que mora comigo.
Não, isso não é verdade.
Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria
comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que
dividir seu espaço - seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal
feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são
solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei,
sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque,
durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de
que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque,
outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente
cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os
homens precisam da ilusão do amor da mesma forma como precisam da
ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível
da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos
da desordem sem nexo.
Isso me pareceu grandiloqüente e sábio como uma idéia que não
fosse minha, tão estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei
nota rapidamente no guardanapo do bar onde estava. Escrevi também
mais alguma coisa que ficou manchada pelo café. Até hoje não consigo
decifrá-la. Ou tenho medo da minha - felizmente indecifrável - lucidez
daquele dia.
Estou me confundindo, estou me dispersando.
O guardanapo, a frase, a mancha, o medo - isso deve vir mais
tarde. Todas essas coisas de que falo agora - as particularidades dos
dragões, a banalidade das pessoas como eu -, só descobri depois. Aos
poucos, na ausência dele, enquanto tentava compreendê-lo. Cada vez
menos para que minha compreensão fosse sedutora a ponto de
convencê-lo a voltar, e cada vez mais para que essa compreensão
ajudasse a mim mesmo a. Não sei dizer. Quando penso desse jeito,
enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais
forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo
de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando
algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser
continuar vivendo.
Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as
janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que
seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do
sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar,
feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja
doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me
perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é
tão vago como se fosse nada.
Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a
contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que
conta e a criança que escuta, sentada no colo de mim. Foi essa a
imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi
que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de
dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não
mais uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa
assim, que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta de uma
agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode
deixar de ser uma pequena dor para transformar-se numa grande
chaga.
Assim, agora, estou aqui. Ponta fina de agulha equilibrada entre
os dedos da mão direita, pairando sobre a palma aberta da mão
esquerda. Algumas anotações em volta, tomadas há muito tempo, o
guardanapo de papel do bar, com aquelas palavras sábias que não
parecem minhas e aquelas outras, manchadas, que não consigo ou não
quero ou finjo não poder decifrar.
Ainda não comecei.
Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo. Mas
preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar
propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito
tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história.
Principalmente se for uma história de dragões. Gosto de dizer tenho um
dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu dizia, um
dragão jamais pertence a nem mora com alguém. Seja uma pessoa
banal igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo,
hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com
esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com
um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um
dragão saber ser gentil e submisso como uma gueixa. Apenas, eles não
dividem seus hábitos. Ninguém é capaz de compreender um dragão.
Eles jamais revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por
exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer
horário, às três da tarde ou às onze da noite, já que o dia e a noite deles
acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da
manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três
vezes, como se estivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e
carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco
metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira desajeitada de
dizer, como costumo dizer agora, ao despertar - que seja doce.
Mas no tempo em que vivia comigo, eu tentava - digamos -
adaptá-lo às circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender,
querido, os vizinhos banais do andar de baixo já reclamaram da sua
cauda batendo no chão ontem às quatro da madrugada. O bebê
acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além disso,
quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo
seu fogo. E, quando você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira
cinzas na minha cabeceira.
Ele não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso
parece ridículo. Um dragão nunca acha que está errado. Na verdade,
jamais está. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no
mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte
dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, ira tarde ou na noite
seguintes, quando ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos
reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e
Kafka, Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais
esturricados. Até que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre
as cinzas. Cinzas são como seda para um dragão, nunca para um
humano, porque a nós lembram destruição e morte, não prazer. Eles
trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais
mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.
Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe.
Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento; tão delicado de contar - você ainda
tem paciência? Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu
tinha tanta certeza da existência dele, se afirmo que não o via. Caso
você dissesse isso, ele riria. Se, como os homens e as hienas, os dragões
tivessem o dom ambíguo do riso. Você o acharia talvez irônico, mas ele
estaria impassível quando perguntasse assim: mas então você só
acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em unicórnios,
salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas
também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas,
quasars e protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante:
“Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões
não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que
não é visível”.
Ele gostava tanto dessas palavras começadas por in - invisível,
inviolável, incompreensível -, que querem dizer o contrário do que
deveriam. Ele próprio era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal
ponto que, quando o percebia intratável, para usar uma palavra que ele
gostaria, suspeitava-o ao contrário: molhado de carinho. Pensava às
vezes em tratá-lo dessa forma, pelo avesso, para que fôssemos mais
felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde demais para
tentar requintadas harmonias.
Ele cheirava a hortelã, a alecrim. Eu acreditava na sua
existência por esse cheiro verde de ervas esmagadas dentro das duas
palmas das mãos. Havia outros sinais, outros augúrios. Mas quero me
deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar. Não acredite se
alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que
os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou à cachorros das
ruas depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe
morto e maresia - nunca foi esse o cheiro dos dragões.
A hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o
apartamento inteiro ficava impregnado desse perfume. Até os vizinhos,
aqueles do andar de baixo, perguntavam se eu andava usando incenso
ou defumação. Bem, a mulher perguntava. Ela tinha uns olhos azuis
inocentes. O marido não dizia nada, sequer me cumprimentava. Acho
que pensava que era uma dessas ervas de índio que as pessoas
costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música
muito alto. A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse
cheiro começava a descer pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que
o bebê sorria, parecendo sonhar. Sem dizer nada, eu sabia que o bebê
devia sonhar com dragões, unicórnios ou salamandras, esse era um
jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais largo. Mas os bebês
costumam esquecer dessas coisas quando deixam de ser bebês, embora
possuam a estranha facilidade de ver dragões - coisa que só os mundos
muito largos conseguem.
Eu aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu
lado. Certa vez, descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de
olhos-azuis-inocentes e seu bebê, que também tinha olhos-azuisinocentes.
O bebê olhou o tempo todo para mim. Depois estendeu as
mãos para o meu lado esquerdo, onde estava o dragão. Os dragões
param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com
o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração vagamente
púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê, e
eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de
barba no terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo
elevador numa tarde que lembro de abril - esse é o mês dos dragões -
dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões, mas
só às vezes, sabem transmitir.
Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe
mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato
dessa palavra seca - amor. Se não o tempo todo, pelo menos quando
lembro de momentos assim. Infelizmente, raros. A aspereza e o avesso
parecem ser mais constantes na natureza dos dragões do que a leveza e
o direito. Mas queria falar de antes do cheiro. Havia outros sinais, já
disse. Vagos, todos eles.
Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da
noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber
por que, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a
comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher
o apartamento de rosas e palmas e morangos daqueles bem gordos e
cachos de uvas reluzentes e beringelas luzidias (os dragões, descobri
depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não conseguia
comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas,
para que o espaço ficasse mais bonito.
Como uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer.
Sentava na sala toda arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas,
cestas de frutas, vasos de flores - acendia um cigarro e ficava
mastigando com os olhos a beleza das coisas limpas, ordenadas, sem
conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À medida que a casa
ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais magro,
olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem
comer, à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todo
numa certeza histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã,
começasse a ficar mais forte, para então, um dia, escorregar que nem
brisa por baixo da porta e se instalar devagarinho no corredor de
entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama. Ele tinha
chegado.
Esses ritmos, só descobri aos poucos. Mesmo o cheiro de hortelã
e alecrim, descobri que era exatamente esse quando encontrei certas
ervas numa barraca de feira. Meu coração disparou, imaginei que ele
estivesse por perto. Fui seguindo o cheiro, até me curvar sobre o
tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes, a hortelã de folhinhas
miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que pareciam
espinhos, mas não feriam. Perguntei o nome, o homem disse, eu não
esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quando sentia
saudade: alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim...
Antes, antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia
unicamente ansiedade, taquicadias, aflição, unhas roídas. Não era bom.
Eu não conseguia trabalhar, ir ao cinema, ler ou afundar em qualquer
outra dessas ocupações banais que as pessoas como eu têm quando
vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a casa, e em ficar
bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu
enfeiava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava,
eu nunca tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiúra.
Menos ainda a daqueles que honram com sua rara visita.
Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio
do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não
alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora. E
forçava os olhos pelos cantos para ver se encontrava pelo menos o
reflexo de suas escamas de prata esverdeadas, luz fugidia, a ponta em
seta de sua cauda pela fresta de alguma porta ou a fumaça de suas
narinas, cujas cores mudavam conforme seu humor. Que era quase
sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias, enlouquecia cada vez
mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo minha ânsia, ele
tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se, fingia
partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma
suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no
esforço de percebê-lo, dia após dia, enquanto flores e frutas apodreciam
nos vasos, nos cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas
esvoaçavam em volta delas, agourentas.
Tudo apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do
impossível que era tê-lo. Atento somente à minha dor, que apodrecia
também, cheirava mal. Então algum dos vizinhos batia à porta para
saber se eu tinha morrido e sim, eu queria dizer, estou apodrecendo
lentamente, cheirando mal como as pessoas banais ou não cheiram
quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega nunca. Eles
não compreenderiam, ninguém compreenderia. Eu não compreendia,
naqueles dias - você compreende?
Os dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando
aquele cheiro de frutas e flores e, pior que tudo, de emoções
apodrecidas tornava-se insuportável. Igual e confundido ao cheiro da
minha felicidade que, desta e mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo
ou acordado, eu recebia sua partida como um súbito soco no peito.
Então olhava para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer
coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios que
fossem. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repente tão
vazias sem ele.
Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa
parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca
mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar,
nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando
pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma
vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos
deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela
fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver,
não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto.
No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão,
mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as
pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele
pantanal de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas
que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.
Hoje, acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo
cresça? Pergunto - porque não estou certo - coisas talvez um tanto
primárias, como: um dragão vem e parte para que você aprenda a dor
de não tê-lo, depois de ter alimentado a ilusão de possuí-lo? E para,
quem sabe, que os humanos aprendam a forma de retê-lo, se ele um dia
voltar?
Não, não é assim. Isso não é verdade.
Os dragões não permanecem. Os dragões são apenas a
anunciação de si próprios. Eles se ensaiam eternamente, jamais
estréiam. As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena.
Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem. b aplauso seria
insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é
compreendida e aceita e admirada, e portanto - pelo avesso, igual ao
direito - incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem
ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas
banais, inventamos - como eu inventava uma beleza de artifícios para
esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim.
Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito
e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica
falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.
Quando volto a pensar nele, nestas noites em que dei para me
debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginálo
voando com suas grandes asas douradas. solto no espaço, em direção
a todos os lugares que é lugar nenhum. Essa é sua natureza mais sutil,
avessa às prisões paradisíacas que idiotamente eu preparava com
armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele vinha. Paraísos
artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo - tão banal
e sedento - a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe soar
ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas
aflições de s feliz.
As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café,
espiar o, tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos
sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada
pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim
aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem
sentir.
Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo?
Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este
guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o
amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal,
diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe. E esse nada
incluiria o amor e Deus, e também os dragões e todo o resto, visível ou
invisível.
Nada, nada disso existe.
Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas
respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia de mim.. Para
manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou
reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los,
mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar,
como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse
jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente
verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do
amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma
numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste
apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito
este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita
e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo:
- Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.
Não, isso também não é verdade.

Caio Fernando Abreu in Os Dragões Não Conhecem o Paraíso.

domingo, 24 de junho de 2012

Chico Buarque e Maria Bethânia - Sem Fantasia




Vem, meu menino vadio

Vem, sem mentir pra você

Vem, mas vem sem fantasia

Que da noite pro dia

Você não vai crescer


Vem, por favor não evites

Meu amor, meus convites

Minha dor, meus apelos

Vou te envolver nos cabelos

Vem perde-te em meus braços

Pelo amor de Deus


Vem que eu te quero fraco

Vem que eu te quero tolo

Vem que eu te quero todo meu


Ah, eu quero te dizer

Que o instante de te ver

Custou tanto penar

Não vou me arrepender

Só vim te convencer

Que eu vim pra não morrer


De tanto te esperar

Eu quero te contar

Das chuvas que apanhei

Das noites que varei

No escuro a te buscar

Eu quero te mostrar

As marcas que ganhei

Nas lutas contra o rei

Nas discussões com Deus

E agora que cheguei

Eu quero a recompensa

Eu quero a prenda imensa

Dos carinhos teus

sábado, 23 de junho de 2012

FRIDA KAHLO

''Algum tempo atrás, talvez uns dias, eu era uma moça caminhando por um mundo de cores, com formas claras e tangíveis. Tudo era misterioso e havia algo oculto; adivinhar-lhe a natureza era um jogo para mim. Se você soubesse como é terrível obter o conhecimento de repente - como um relâmpago iluminado a Terra! Agora, vivo num planeta dolorido, transparente como gelo. É como se houvesse aprendido tudo de uma vez, numa questão de segundos. Minhas amigas e colegas tornaram-se mulheres lentamente. Eu envelheci em instantes e agora tudo está embotado e plano. Sei que não há nada escondido; se houvesse, eu veria.''
Frida Kahlo

FRIDA KAHLO - Tango Lila Downs

[...]


Há uma mulher na minha solidão sem lábios
que não sei se é azul ou verde
que se apaga talvez no horizonte
há uma mulher talvez na palavra solidão
que nunca se distingue da palavra
porque é a palavra mesma que não se diz
porque é a solidão que não é ela

há uma mulher nos confins da minha ausência
como uma sombra da minha ausência
como a ausência da mesma sombra

Há uma mulher nos lábios da minha solidão
que nunca chega a ser pronunciada
ou é o ar de uma sede que não respiro
ou o nada mesmo de toda a solidão

há uma mulher de musgo nas minhas pálpebras
e outra que se esconde nos olhos e é a mesma
há uma mulher de música
no meu sorriso
há uma mulher de tristeza como o tempo
na água das minhas mãos


Há tantas mulheres no meu corpo
e tantas quantas todas são uma só
ou nenhuma
ou nenhuma
e é a mesma que caminha contra o vento
em qualquer rua


António Ramos Rosa

Gotan Projet - El Último Tango en París - feat Gato Barbieri - Last Tang...

MANUEL ANTÓNIO

Amor como em Casa

Fechar A tua avaliação foi adicionada com êxito.
Fechar Desculpa, ocorreu um erro enquanto a tua avaliação era adicionada. Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina, in "Ainda não é o Fim nem o Princípio
do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde"

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Grace Jones - Libertango

[...]

"estar vivo é o maior perigo...um grande delírio...um quilo
de riso...um destino preciso...um narciso no espelho...um
travesseiro sem cabeça...uma peça...uma pessoa...ficar triste
numa boa...uma carona na canoa da morte com a sorte do
contrário...uma palavra que não há dicionário que traduza
ou suporte..."

Emerson Dent

Yann Tiersen - La Noyee

Gal Costa - Três da Madrugada

https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=13389UquLZ0#!

O RAPAZ MAIS TRISTE DO MUNDO.

Para
Ronaldo Pamplona da Costa
“São aqueles que vêm do nada
e partem para lugar nenhum.
Alguém que aparece de repente,
que ninguém sabe de onde veio nem para onde vai.
A man out of nowhere.”
(Nelson Brissac Peixoto: Cenários em Ruínas)

UM AQUÁRIO de águas sujas, a noite e a névoa da noite onde eles navegam sem me ver, peixes cegos ignorantes de seu caminho inevitável em direção um ao outro e a mim. Pleno inverno gelado, agosto e madrugada na esquina da loja funerária eles navegam entre punks, mendigos, neons, prostitutas e gemidos de sintetizador eletrônico - sons, algas, águas - soltos no espaço que separa o bar maldito das trevas do par que na cidade que não é nem será mais a de um deles. Porque as cidades, como as pessoas ocasionais e os apartamentos alugados, foram feitas para serem abandonadas - reflete, enquanto navega.
Ele: esse homem de quase quarenta anos, começando a beber um pouco demais, não muito, só o suficiente para acender a emoção cansada, e a perder cabelo no alto da cabeça, não muito, mas o suficiente para algumas piadas patéticas. Sobre esse espaço vazio de cabelos no alto da cabeça caem as gotas de sereno, cristais de névoa, e por baixo dele acontecem certos pensamentos altos de noite, algum álcool e muita solidão. Ele acende um cigarro molhado, ele ergue a gola do impermeável cinza até as orelhas. Nesse gesto, a mão que segura o cigarro roça áspera na barba de três dias. Ele suspira, então, gelado.
Há muitas outras coisas que se poderia dizer sobre esse homem nesta noite turva, neste bar onde agora entra, na cidade que um dia foi a dele. Mas parado aqui, no fundo do mesmo bar em que ele entra, sem passado, porque não têm passado os homens de quase quarenta anos que caminham sozinhos pelas madrugadas - todas essas coisas um tanto vagas, um tanto tolas, são tudo o que posso dizer sobre ele. Assim magro, molhado, meio curvo de magreza, frio e estranhamento. O estranhamento típico dos homens de quase quarenta anos vagando pelas noites de cidades que, por terem deixado de ser as deles, tornaram-se ainda mais desconhecidas que qualquer outra.
O bar é igual a um longo corredor polonês. As paredes demarcadas - à direita de quem entra, mas à esquerda de onde contemplo - pelo balcão comprido e, do lado oposto, pela fila indiana de mesinhas ordinárias, fórmica imitando mármore. Nessa linha, estendida horizontal da porta de entrada até a juke-box do fundo onde estou e espio, ele se movimenta - magro, curvo, molhado - entre as pessoas enoveladas. Vestido de escuro, massa negra, monstro vomitado pelas ondas noturnas na areia suja do bar. Entre essas pessoas, embora vestido de cinza, ele parece todo branco.
O homem pede uma cerveja no balcão, depois se perde outra vez no meio das gentes. Alongando o pescoço, mal consigo acompanhar o topo da sua cabeça de homem alto, meio calvo, até que ele descubra a cadeira vazia na mesa onde está sentado aquele rapaz. E daqui onde estou, ao lado da máquina de música próxima ao corredor que afunda na luz mortiça dos banheiros imundos, posso vê-los e ouvi-los perfeitamente através do bafo de cerveja, desodorante sanitário e mijo que chegam juntos às nossas narinas.
Na máquina de música, para embalar esse encontro que eles ainda não perceberam que estão tendo, para ajudá-los a navegar melhor nisso que por enquanto não tem nome e poderiam sequer ver, se eu não ajudasse - escolherei lentos blues, solos sofridos de sax, pianos lentíssimos, à beira do êxtase, clarinetas ofegantes e vozes graves, negras vozes roucas ásperas de cigarros, mas aveludadas por goles de bourbom ou conhaque, para que tudo escorra dourado como a bebida de outras águas, não estas, tão turvas, de onde emergiram dois pobres peixes cegos da noite, para sempre ignorantes da minha presença aqui, junto à máquina de música, ao lado do corredor que leva aos banheiros imundos, a criar claridades impossíveis e a ninar com canções malditas esse encontro inesperado, tanto por eles, que navegam cegos, quanto por mim, pescador sem anzol debruçado sobre a água do espaço que me separa deles.
Aquele, aquele mesmo para onde meu olhar se dirige agora, aquele rapaz em frente ao qual o homem de impermeável cinza senta com sua cerveja. Exatamente esse: um rapaz de quase vinte anos, bebendo um pouco demais, não muito, como costumam beber esses rapazes de quase vinte anos que ainda desconhecem os limites e os perigos do jogo, com algumas espinhas, não muitas, sobras de adolescência espalhadas pelo rosto muito branco, entre fios dispersos da barba que ainda não encontrou aquela justa forma definitiva já arquitetada na cara dos homens de quase quarenta anos, como esse que está à frente dele. Por trás das espinhas, entre os fios da barba informe, acontecem certos pensamentos - densos de névoa, algum álcool e muita solidão. Aquele rapaz acende um cigarro molhado, aquele rapaz desce a gola do casaco preto, aquele rapaz afasta da lapela puída umas cinzas, uns fios de cabelo, poeiras, gotas, grilos. Depois suspira, gelado. Olha em volta como se não visse nada, ninguém. Nem sequer esse homem sentado à sua frente, que aparentemente também não o vê.
Há muitas outras coisas que se poderia dizer sobre aquele rapaz nesta noite sombria, na cidade que sempre foi a dele, neste bar onde agora está sentado à frente de um homem inteiramente desconhecido. Mas parado aqui no fundo do mesmo bar onde ele agora está sentado, com seu pequeno passado provavelmente melancólico e nenhum futuro, porque é sempre obscuro, quase invisível, o futuro dos rapazes de menos de vinte anos - todas essas coisas um tanto vagas, um tanto tolas, são tudo o que posso dizer sobre ele. Assim magro, molhado, meio curvo de magreza e frio. Com esse estranhamento típico dos rapazes que ainda não aprenderam nem os perigos nem os prazeres do jogo. Se é que se trata de um jogo.
Pudesse eu ser o grande Zeus Olimpo e destruiria a cidade com raios flamejantes só para viver o momento da luz elétrica do raio* - ele dirá, aquele rapaz, correspondendo à previsível arrogância de sua idade. Não agora. Por enquanto, não diz nada. Nem ele nem o homem de quase quarenta anos, sentados frente a frente na mesa à esquerda de onde estrategicamente espiono, junto à máquina de música, à direita de quem entra, surgidos do fundo do aquário de águas sujas da noite e da névoa na noite lá fora em que navegavam cegos e tontos, antes de entrarem neste bar. Antes que eu os sugasse com meus olhos ávidos dos encontros alheios, para dar-lhes vida, mesmo esta precária, de papel, onde Zeus Olimpo Oxalá Tupã também exercem seu poder sobre predestinados simulacros.
Não, não dizem nada. Há ruído suficiente em volta para poupar-lhes as palavras, quem sabe amargas. Talvez também, pelo avesso, leite intolerável para a garganta ardida de quem ronda as noites feito eles, feito eu, feito nós. Adiáveis as palavras deles. Não as minhas.
Por enquanto, olham em volta. Deliberadamente, não se
(*) Um verso inédito de Antonio Augusto Caldasso Couto
encaram. Embora sejam os dois magros, meio curvos de tanta magreza, molhados da névoa lá de fora, embora um vista cinza e outro preto, como mandam os tempos, para não serem rejeitados, embora ambos bebam cervejas um tanto mornas, mas pouco importa neste bar o que se bebe, desde que se beba, e fumem cigarros igualmente amassados, viciosos cigarros tristes desses que só homens solitários e noturnos rebuscam nas madrugadas pelo fundo dos bolsos dos casacos, tenham eles vinte ou quarenta anos. Ou mais, ou menos homens solitários não tem idade. Embora gelados, tontos de álcool, hirtos de frio, lúcidos dessa solidão que persegue feito sina os homens sem passado nem futuro, nem mulher ou amigo, família nem bens - eles não se olham.
Eles se ignoram. Porque pressentem que - eu invento, sou Senhor de meu invento absurdo e estupidamente real, porque o vou vivendo nas veias agora, enquanto invento - se cederem à solidão um do outro, não sobrará mais espaço algum para fugas como alguma trepada bêbada com alguém de quem não se lembrará o rosto dois dias depois, o pó cheirado na curva da esquina, a mijada sacana ao lado do garçom ausente de conflitos, mas compreensivo com qualquer tipo de porre alheio, um baseado sôfrego na lama do parque. Coisas assim, você sabe? Eu, sim: amar o mesmo de si no outro às vezes acorrenta, mas quando os corpos se tocam as mentes conseguem voar para bem mais longe que o horizonte, que não se vê nunca daqui. No entanto, é claro lá: quando os corpos se tocam depois de amar o mesmo de si no outro.
Portanto, não se olham. E não sou eu quem decide, são eles. Não se deve olhar quando olhar significaria debruçar-se sobre um espelho talvez rachado. Que pode ferir, com seus cacos deformantes. Por isso mesmo hesito, então, entre jogar minha ficha em Bessie Smith ou Louis Armstrong (tudo é imaginário nesta noite, neste bar, nesta máquina de música repleta de outras facilidades mais em voga), para facilitar o fluxo, desimpedir o trânsito, para adoçar ou amargar as coisas, mesmo temendo que rapazes de menos de vinte anos não sejam ainda capazes de compreender tais abismos colonizados, negros requintes noturnos de vozes roucas contra o veludo azul a recobrir paredes de outro lugar que não este corredor polonês numa cidade provinciana cujo nome esqueci, esquecemos. Sofisticação, pose: fadiga e luvas de cano longo.
Minha, deles. Porque somos três e um. O que vê de fora, o que vê de longe, o que vê muito cedo. Este, antevisão. Os três, o mesmo susto. Vendo de dentro, emaranhados. Agora quatro?
Porque então começa. Mas começa tão banal - como é seu nome, qual o seu signo, quer outra cerveja, me dá um cigarro, não tenho grana, eu pago, pode deixar, fazendo o quê, por aí, vendo o que pinta, vem sempre aqui, faz tanto frio - que quase aperto o botão de outros sons que não aqueles que imagino, tão roucos, para que no grito tenso de um baixo elétrico possam chafurdar na estridência de cada noite. Mas subitamente os dois se compõem - esse homem de impermeável cinza, aquele rapaz de casaco preto, juntos na mesma mesa - e sem que eu esteja prevenido, embora estivesse, porque fui quem armou esta cilada, de repente eles se olham bem dentro e fundo dos olhos um do outro. Ao lado da massa negra, monstro marinho, no meio do cheiro de mijo e cerveja, por entre os azulejos brancos das paredes do bar, como um enorme banheiro cravado no centro da noite onde estão perdidos - eles se encontram e se olham.
Eles se reconhecem, finalmente eles aceitam se reconhecer. Eles acendem os cigarros amarrotados um do outro com segurança e certa ternura, ainda tímida. Eles dividem delicadamente uma cerveja em comum. Eles se contemplam com distância, precisão, método, ordem, disciplina. Sem surpresa nem desejo, porque esse rapaz de casaco preto, barba irregular e algumas espinhas não seria o homem que aquele homem de espaço vazio no alto da cabeça desejaria, se desejasse outros homens, e talvez deseje. Nem o oposto: aquele rapaz, mesmo sendo quem sabe capaz de tais ousadias, não desejaria esse homem através da palma da mão inventando loucuras no silêncio de seu quarto, certamente cheio de flâmulas, super-heróis, adesivos e todos esses vestígios do tempo que mal acabou de passar, quando é cedo demais para saber se se deseja, fatalmente, outro igual. Quem sabe sim. Mas este homem, aquele rapaz - não. É de outra forma que tudo acontece.
Eles se contemplam sem desejo. Eles se contemplam doces, desarmados, cúmplices, abandonados, pungentes, severos, companheiros. Apiedados. Eles armam palavras que chegam até mim em fragmentos partidos pelo ar que nos separa, em forma de interrogações mansas, hesitantes, perguntas que cercam com cautela e encantamento um reconhecimento que deixou de ser noturno para transformar-se em qualquer outra coisa a que ainda não dei nome, e não sei se darei, tão luminosa que ameaça cegar a mim também. Contenho o verbo, enquanto eles agora vêem o que mal começa a se desenhar, e eu acho belo.
O rapaz olha os próprios braços e diz: eu sou tão magro, vê? Quando abraço uma mina - ele fala assim mesmo, mina, e o homem pisca ligeiramente, discreto, para não sublinhar o abismo de quase vinte anos - fico olhando para os meus braços frágeis incapazes de abraçar com força uma mulher, e fico então imaginando músculos que não tenho, fico inventando forças, porque eu sou tão fraco, porque eu sou tão magro, porque eu sou tão novo. O rapaz olha em volta seco, nenhuma sombra de paixão em seu rosto muito branco, e diz ainda: eu quero me matar, eu não entendo estar vivo, eu não tenho pai, minha mãe me sacode todo dia e grita acorda, levanta, vadio, vai trabalhar. Eu quero ler poesia, eu nunca tive um amigo, eu nunca recebi uma carta. Fico caminhando à noite pelos bares, eu tenho medo de dormir, eu tenho medo de acordar, acabo jogando sinuca a madrugada toda e indo dormir quando o sol já está acordando e eu completamente bêbado. Eu nasci neste tempo em que tudo acabou, eu não tenho futuro, eu não acredito em nada - isso ele não diz, mas eu escuto, e o homem em frente dele também, e o bar inteiro também. Então o homem responde, com essa sabedoria meio composta que os homens de quase quarenta anos inevitavelmente conseguiram.
Ele, o homem, passa a palma da mão pelos cabelos ralos, como se acariciasse o tempo passado, e diz, o homem diz: não tenha medo, vai passar. Não tenha medo, menino. Você vai encontrar um jeito certo, embora não exista o jeito certo. Mas você vai encontrar o seu jeito, e é ele que importa. Se você souber segurar, pode até ser bonito. O homem tira a carteira do bolso, pede outra cerveja e um maço de cigarros novinhos, depois olha com olhos molhados para o rapaz e diz assim. Não, ele não diz nada. Ele olha com olhos molhados para o rapaz. Durante muito tempo, um homem de quase quarenta anos olha com olhos molhados para um rapaz de quase vinte anos, que ele nunca tinha visto antes, no meio de um bar no meio desta cidade que já não é mais a dele. Enquanto esse olhar acontece, e é demorado, o homem descobre o que eu também descubro, no mesmo momento.
Aquele rapaz de casaco preto, algumas espinhas, barba irregular e pele branca demais - este é o rapaz mais triste do mundo.
E para tornar todas essas coisas ainda mais ridículas, ou pelo menos improváveis, o amanhã que já é hoje será dia dos Pais. Atordoado por datas que nada significam para os que nada têm, sem nenhum filho, mais para reforçar o lado da solidão, o homem de quase quarenta anos começa a contar que veio de outra cidade para ver seu pai. E vai revelando então, naquele mesmo tom desolado do rapaz que agora e para sempre tornou-se o rapaz mais triste do mundo, igual ao que ele foi, mas não voltará a ser, embora jamais deixará de sê-lo, ele diz assim: eles não olham para mim, eles ficam lá naquela segurança armada de família que não admite nada nem ninguém capaz de perturbar o seu sossego falso, e não me olham, não me vêem, não me sabem. Me diluem, me invisibilizam, me limitam àquele limite insuportável do que eles escolheram suportar, e eu não suporto - você me entende?
O rapaz de menos de vinte anos quase não entende. Mas estende a mão por cima da mesa para tocar a mão do homem de quase quarenta anos. Os dedos da mão desse homem se fecham dentro e entre os dedos da mão daquele rapaz. Há tanta sede entre eles, entre nós.
Passou-se muito tempo. Vai amanhecer. O frio aumentou. O bar está meio vazio, quase fechando. Debruçado na caixa, o dono dorme. Gastei quase todas as minhas fichas: tudo é blues, azul e dor mansinha. Só me resta uma, que vou jogar certeiro em Tom Waits. Me preparo. Então - enquanto os garçons amontoam cadeiras em cima das mesas vazias, um pouco irritados comigo, que a tudo invento e alimento, e com esses dois caras estranhos, parecem dois veados de mãos dadas, perdidamente apaixonados por alguém que não é o outro, mas poderia ser, se ousassem tanto e não tivessem que partir - o homem segura com mais força nas duas mãos do rapaz mais triste do mundo. As quatro mãos se apertam, se aquecem, se misturam, se confortam. Não negro monstro marinho viscoso, vômito na manhã. Mas sim branca estrela do mar. Pentáculo, madrepérola. Ostra entreaberta exibindo a negra pérola arrancada da noite e da doença, puro blues. E diz, o homem diz:
- Você não existe. Eu não existo. Mas estou tão poderoso na minha sede que inventei a você para matar a minha sede imensa. Você está tão forte na sua fragilidade que inventou a mim para matar a sua sede exata. Nós nos inventamos um ao outro porque éramos tudo o que precisávamos para continuar vivendo. E porque nos inventamos, eu te confiro poder sobre o meu destino e você me confere poder sobre o teu destino. Você me dá seu futuro, eu te ofereço meu passado. Então e assim, somos presente, passado e futuro. Tempo infinito num sZ, esse é o eterno.
No bar de cadeiras amontoadas, resta apenas aquela mesa onde os dois permanecem sentados, alheios às ruínas do cenário. Do meu canto, espio. Deve haver alguma puta caída num canto, alguma bichinha masturbando um negro no banheiro. Eu não os vejo. Por enquanto e agora, não. Do meu canto, vejo somente esses homens diversos e iguais, as quatro mãos dadas sobre a mesinha ordinária, fórmica imitando mármore.
E é então que o rapaz conta que entregou flores o dia inteiro, que juntou algum dinheiro, batalhou cem paus, qualquer micharia assim, essas coisas de rapazes com menos de vinte anos - e faz questão, magnífico, de pagar a última cerveja. Tudo é último agora. Não há mais bares abertos na cidade. Uma luz vítrea começa a varar a névoa da noite onde eles ainda estão mergulhados junto comigo, com você, peixes míopes apertando os olhos para se verem de perto, em dose, e conseguem. Lindos, assustadores: as guelras fremem. O homem puxa outra vez sua carteira cheia de notas e cheques e cartões, dessas carteiras recheadas que só os homens de quase quarenta anos conseguiram conquistar, mas não significam nada em momentos assim. O rapaz insiste, o homem cede, guarda a carteira. O último garçom traz a última cerveja. Eu jogo minha última ficha na máquina de música, no último blues. Ninguém vê, ninguém ouve mais nada na manhã que chega para adormecer loucuras. Amanhã, você lembrará?
Ternos, pálidos, reais: eles se olham. Eles se acariciam mutuamente as mãos, depois os braços, os ombros, o pescoço, o rosto, os traços do rosto, os cabelos. Com essa doçura nascida entre dois homens sozinhos no meio de uma noite gelada, meio bêbados e sem nenhum outro recurso a não ser se amarem assim, mais apaixonadamente do que se amariam se estivessem à caça de outro corpo, igual ou diverso do deles - pouco importa, tudo é sede. De onde estou, vejo a alma dos dois brilhar. Amarelinho, violeta claro: dança sobre o lixo. Eles choram enquanto se acariciam. Um homem de quase quarenta anos e um rapaz de menos de vinte, sem idade os dois.
Eu sou os dois, eu sou os três, eu sou nós quatro. Esses dois que se encontram, esse três que espia e conta, esse quarto que escuta. Nós somos um - esse que procura sem encontrar e, quando encontra, não costuma suportar o encontro que desmente sua suposta sina. É preciso que não exista o que procura, caso contrário o roteiro teria que ser refeito para introduzir Tui, a Alegria. E a alegria é o lago, não o aquário turvo, névoa, palavras baças: Netuno, sinastrias. E talvez exista, sim, pelo menos para suprir a sede do tempo que se foi, do tempo que não veio, do tempo que se imagina, se inventa ou se calcula. Do tempo, enfim.
Esse estranho poder demiúrgico me deixa ainda mais tonto que eles, quando levantam e se abraçam demorada- mente à porta do bar, depois de pagarem a conta. Amantes, parentes, iguais: estranhos.
Então o rapaz se vai, porque tem outros caminhos, O homem fica, porque tem outros caminhos. Ele acompanha o vulto do rapaz que se vai, exatamente com o mesmo olhar com que acompanho o vulto desse homem parado por um instante à porta do bar. E não ficará, porque esta cidade não é mais a dele. O rapaz sim, ficará, porque é nesta mesma cidade que deve escolher essa coisa vaga - um caminho, um destino, uma história com agá -, se é que se escolhe alguma coisa, para depois matá-la, essa coisa vaga futura, quando for passado, se é que se mata alguma coisa. A voz rouca de Tom Waits repete e repete e repete que este é o tempo, e que haverá tempo, como num poema de T. S. Eliot, e sim, deve haver, certamente, enquanto o último garçom toca suave no ombro desse homem de impermeável cinza, cabelos rareando no alto da cabeça, quase quarenta anos, parado à porta do bar. Delicado, amigável, apontando o vulto do rapaz mais triste do mundo que se afasta para tomar o primeiro ônibus, o garçom pergunta:
- Ele é seu filho?
De onde estou, ao lado da máquina de música que emudece, sinto um inexplicável perfume de rosas frescas. Como se tivesse amanhecido e uma súbita primavera se instaurasse no parque em frente - nada contra as facilidades dos finais. Antes que o homem se vá, consigo vê-lo sorrir de manso e então mentir ao garçom dizendo sim, dizendo não, quem sabe. E o que disser, como eu, será verdade. Aqui de onde resto, sei que continuamos sendo três e quatro. Eu pai deles, eu filho deles, eu eles próprios, mais você: nós quatro, um único homem perdido na noite, afundado nesse aquário de águas sujas refletindo o brilho de neon. Peixe cego ignorante de meu caminho inevitável em direção ao outro que contemplo de longe, olhos molhados, sem coragem de tocá-lo. Alto de noite, certa loucura, algum álcool e muita solidão.
Quero mais um uísque, outra carreira. Tudo aos poucos vira dia e a vida - ah, a vida - pode ser medo e mel quando você se entrega e vê, mesmo de longe.
Não, não quero nem preciso nada se você me tocar. Estendo a mão.
Depois suspiro, gelado. E te abandono.

Caio Fernando Abreu in Os Dragões Não Conhecem o Paraíso.

[...]

Vontade
De ser nudez
Tipo
Nuvem
Que depois
Da chuva
Às vezes
Some
De vez.

Paula Taitelbaum, in Ménage à Trois

[...]

       
Aqui me tenho
Como não me

conheço

_______nem me

quis
sem começo
nem fim

______aqui me
tenho

______sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um

bicho

_____transparente

 Ferreira Gullar